A loucura animal

Em seu livro 'Animal Madness' ('Loucura Animal', sem edição em português), a autora mostra como cachorros deprimidos, golfinhos suicidas ou elefantes compulsivos mudaram sua visão a respeito dos humanos (Thinkstock/VEJA)

Nos últimos sete anos, a bióloga americana Laurel Braitman pesquisou a demência de cães, gatos, elefantes ou golfinhos. Nesta entrevista ao site de VEJA, ela conta sua jornada pela história da insanidade animal e explica de que forma os bichos nos ajudaram, também, a compreender a mente e emoções humanas

Aos 6 anos, Oliver, um grande cão bernese que adorava brincar de esconde-esconde, atirou-se do quarto andar do prédio onde vivia. Ansioso por estar sozinho no apartamento, ele arrancou o aparelho de ar-condicionado da parede, comeu a fiação, jogou-se pelo buraco e, milagrosamente, sobreviveu. No hospital, olhando os ferimentos de seu cão, a bióloga Laurel Braitman resolveu entender o que se passava pela cabeça de Oliver para chegar a essa atitude extrema.
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No primeiro dia de janeiro de 1889, o elefante Tip foi dado de presente à cidade de Nova York por um proprietário de circos americanos. Tip era um animal dócil que se tornou uma celebridade no Central Park Zoo. Cinco anos depois, o jornal 'The New York Times' anunciava que o elefante, demente, deveria “ser aposentado ou morrer”. Agressivo, Tip não suportava ficar dentro da jaula: tinha quebrado suas correntes e jogado o corpo sobre seu tratador, tentando pisoteá-lo. Três anos depois, em um novo ataque, as paredes da jaula tremeram — mas o tratador sobreviveu. Uma grande campanha nos meios de comunicação discutiu com o público o futuro de Tip — os jornais argumentavam que o elefante era inteligente o suficiente para ficar maluco. Ativistas animais eram contra a morte do animal, mas, em maio de 1894, o zoológico decidiu sacrificá-lo. Tip tinha perseguido pelo menos quatro funcionários do Central Park com a intenção de matá-los o que, na época, era classificado de insanidade. Ele comeu uma ração envenenada e seu esqueleto e presas foram doados ao Museu Americano de História Natural, onde estão até hoje.
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Procurou veterinários, psiquiatras, psicólogos e neurologistas e passou os últimos sete anos pesquisando animais que, como o seu bernese, apresentavam transtornos mentais. Encontrou elefantes com ataques de ansiedade, ursos depressivos, gorilas com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), ratos e papagaios com tricotilomania (o impulso de arrancar os próprios cabelos) e golfinhos suicidas. “Identificar e entender a insanidade animal e ajudá-los a se recuperar diz muito sobre nossa humanidade. Quando estamos ansiosos, raivosos, assustados ou compulsivos mostramos o quanto somos surpreendentemente iguais às outras criaturas com quem dividimos o planeta”, diz Laurel.
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John Daniel foi capturado em 1917, nas florestas do Gabão, e levado para viver na vitrine de uma loja de departamentos londrina — a ideia é que ele fosse uma excelente atração para o Natal. Ao vê-lo por trás dos vidros, a jovem Alyse Cunningham, resolveu comprar o macaco e levá-lo para sua casa. Ela colocou uma cama para John em um dos quartos da casa, ensinou-o a usar talheres, copos, abrir e fechar portas e, em seis semanas, ele andava pela casa como um membro da família, conduzindo as visitas pela mão para o interior da casa. Suas façanhas eram noticiadas pelos jornais ingleses e chamaram a atenção de donos de zoológicos e circos, que queriam exibi-lo a todo custo. Até então, todos os gorilas cativos morriam devido ao que os cientistas chamavam de nostalgia e melancolia. Quando John Daniel começou a crescer, Alyse decidiu que não poderia manter um animal de cerca de 300 quilos em casa. Encontrou o que parecia ser um bom lugar na Flórida, nos Estados Unidos, e vendeu seu macaco. Sem que ela soubesse, em 1921, John Daniel chegou a um circo e manteve-se isolado, sem comer e com a cabeça coberta por um lençol durante todo o tempo. Os jornais diziam que ele estava "morrendo de tristeza e solidão". Assim que Alyse soube o que tinha acontecido, embarcou para recuperar o macaco, mas não chegou a tempo: ele morreu, deprimido, três semanas depois de desembarcar nos Estados Unidos.
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No livro Animal Madness (Loucura Animal, sem edição em português), recém-lançado nos Estados Unidos, a bióloga, que também é especialista em história da ciência pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), reconstrói a história da demência animal e conta como transtornos mentais de macacos, ratos, cachorros ou gatos impulsionaram a compreensão da mente humana. Foram eles as cobaias para testar os primeiros antidepressivos ou ansiolíticos inventados. E, da mesma maneira que nossa compreensão a respeito de distúrbios mentais evoluiu ao longo dos anos, o entendimento do cérebro e comportamento animais vem passando por uma revolução. De acordo com Laurel, a ciência não questiona mais se os animais têm emoções, mas se interroga, atualmente, que tipo de emoções são essas e de onde vêm.  
Nesta entrevista ao site de VEJA, a autora, que esteve no Brasil em outubro para acompanhar a conferência TED Global, no Rio de Janeiro, conta como foi sua jornada para desvendar a história da demência animal. E explica de que forma essa compreensão mudou também sua visão a respeito dos seres humanos.
Seu cão foi a porta de entrada que a fez descobrir a loucura dos animais. Quando percebeu que ele poderia ter algum distúrbio? Adotei o Oliver em 2002 e ele era uma criatura feliz e adorável. Mas, com seis meses de convivência, percebi alguns problemas. Ele não conseguia ficar sozinho e comia qualquer coisa que não fosse comida. Basicamente, ele ficava calmo apenas perto de mim e entrava em pânico isolado ou na presença de qualquer outro ser. Seu comportamento era muito distinto de todos os animais que conhecia.
Foi nesse momento que ele recebeu o diagnóstico de ansiedade? Achava apenas que ele era diferente — jamais pensei que animais pudessem ter transtornos mentais. Cresci em uma fazenda repleta de bichos e nunca havia visto algum com esse tipo de problema. Para mim, dizer que um animal tinha esses distúrbios era projetar sentimentos e emoções humanas neles. Mas percebi que meu cão era esquisito e, pouco tempo depois, ele se jogou da janela do quarto andar. Assim que se curou dos ferimentos causados pela queda, levei Oliver a um veterinário que receitou para ele Prozac e Valium.
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Little Joe tem 16 anos, mora no Franklin Park Zoo, em Boston e é famoso por suas escapadas: às vezes machuca algumas pessoas mas, normalmente, apenas caminha pela vizinhança. Em uma de suas fugas, em 2003, ele andou pela cidade durante algumas horas e se sentou em um ponto de ônibus para descansar. Uma das pessoas que o viu achou que ele era um jovem “com uma grande jaqueta escura e máscara”. Quando não está planejando fugas, Little Joe também é conhecido por arrancar seus pelos, uma doença mental chamada tricotilomania. Ele arranca os pelos de seus braços e, às vezes, come-os, deixando aparecer largos espaços de pele com feridas. A doença também atacou a gorila Kiojasha, do Bronx Zoo de Nova York, que arrancou tantos pelos que os visitantes a confundiram com uma “idosa bastante enrugada”. Os veterinários acreditam que, em animais como primatas, ratos e aves, a doença se intensifica quando estão muito ansiosos ou irritados.
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Esses medicamentos são normalmente dados a cães? Nunca havia visto isso. Achei muito estranho e fui pesquisar como eles funcionavam nos cachorros. Mas não encontrei muita coisa sobre seu efeito em bichos e nem sobre como eles são usados em clínicas veterinárias. Como não havia livros, comecei a conversar com treinadores, cientistas e especialistas em comportamento animal para saber se esses medicamentos tinham em cães a mesma função que em nós e também para entender o que estava acontecendo com o Oliver. Aos poucos, fui descobrindo que os animais, como nós, também têm transtornos mentais e, sim, tomam os mesmos remédios que nós para tratá-los. Foi aí que pensei em escrever um livro que pudesse ajudar outras pessoas que passam pelas mesmas dificuldades que vivi.
E que tipo de distúrbios os animais podem ter? Assim como em humanos, muitas das doenças mentais dos animais têm a ver com reações inapropriadas ao medo e à ansiedade. Isso acontece porque essas respostas são coordenadas pelas regiões mais primitivas do cérebro, compartilhadas pela maior parte dos vertebrados. Assim como nós, os animais sentem medo ou ansiedade em ocasiões desnecessárias e desenvolvem compulsões como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e várias outras formas de distúrbios mentais como ataques de ansiedade ou depressão.
Ou seja, se a base para o medo é a mesma, provavelmente elas também podem funcionar de maneira inadequada em animais, assim como acontece conosco. Exatamente. Por isso, os primeiros tratamentos e medicamentos para doenças mentais foram estudadas em animais. Há mais de um século, o médico russo Ivan Pavlov [1849-1936] estimulava conflitos psicológicos em cães e gatos para entender seu mecanismo. Durante a II Guerra Mundial, muitos médicos perceberam os mesmos sintomas daqueles animais nos soldados, no que viria a ser o stress pós-traumático. Nos anos 1930, as primeiras lobotomias foram feitas em dois chimpanzés agressivos e ansiosos e, na mesma época, outras criaturas foram cobaias para o desenvolvimento dos eletrochoques para tratar convulsões da esquizofrenia. Até hoje, novos medicamentos para doenças mentais são testados inicialmente em animais: ratos, porcos e gorilas ajudaram a entender os distúrbios humanos e, agora, nós estamos usando nossos remédios neles.
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Em 2003, com um ano de idade, Rara foi vendida para um dos hotéis Sheraton da Tailândia. Cresceu em um pavilhão e era trazida para tirar fotos e brincar com os hóspedes. Carismática e divertida, era a alegria das crianças que chegavam ao hotel. Ao fazer seis anos e pesando algumas toneladas, ela já precisava ser acorrentada mais vezes por dia, pois suas brincadeiras tornaram-se perigosas. Pouco tempo depois, foi vendida para um santuário. No entanto, como tinha sido criada com humanos, não se deu bem com os outros da sua espécie — só se comunicava com seu tratador e, um dia, quando ele faltou, aterrorizou o parque, esmagando árvores e carros. Isolada de outros elefantes e com alguns ataques de agressividade e ansiedade, ela morreu de ataque cardíaco pouco tempo depois, em 2010, depois de passar uma noite sem comer.

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No entanto, os homens são capazes de responder emocionalmente ao medo. Os animais também? Tive uma conversa muito interessante com a cientista Lori Marino, que trabalha na Universidade Emory, nos Estados Unidos, e durante anos pesquisou a cognição em golfinhos. Ela me explicou que as emoções são uma das partes mais antigas da psicolgia, presente nos primeiros animais. Sem elas, um indivíduo não consegue agir ou ter decisões que são chave para a sobrevivência. Elas são selecionadas, algumas são mais simples, outras mais complexas, mas todos os animais têm emoções. Homens, grandes macacos, golfinhos e elefantes, que possuem um cérebro mais desenvolvido, podem elaborar estratégias para lidar com o medo ou a ansiedade. Mas, como a estrutura para as emoções é semelhante, a experiência emocional pode ser similar em todas as espécies, apesar da inteligência.
Vários estudos recentes têm sido publicados sobre o que seriam as emoções animais. Há pesquisas sobre suas dores emocionais ou mentais? Nos últimos anos, diversas pesquisas têm mostrado que os animais sofrem traumas emocionais. A discussão científica está mudando e deixou de ser ‘será que os animais têm emoções’, para ‘quais são elas e de onde vêm?’. Achamos que é uma novidade colocar cães em aparelhos de ressonância magnética funcional (fMRI) e pesquisar a neurociência das emoções animais — mas a inovação são as técnicas, que conseguem medi-las com bastante precisão. Mas quem trabalha com os bichos está acostumado com isso e não acha surpreendente que os animais tenham uma vida emocional rica e complicada.
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Nos anos 1960, o golfinho Flipper foi o astro de uma série de televisão americana com o mesmo nome. No entanto, Flipper não era apenas um golfinho, mas cinco animais diferentes, treinados para mesmo papel. Um deles era Kathy, uma fêmea dócil, que vivia no aquário de Miami. Depois que a série acabou, em 1967, a interrupção da rotina de gravações e treinamentos a abateu profundamente. Ficou deprimida e passava seus dias boiando na água, o que lhe rendeu diversas bolhas e queimaduras. Preocupados com sua saúde, o tratadores achavam que ela tinha “perdido a vontade de viver” e a isolaram em um tanque de aço, mas o animal quase não se alimentava. Fraca, respirando com dificuldades, ela morreu em 1970. O americano Ric O'Barry, que treinou a animal durante a série e estava na piscina quando ela morreu, acredita que Kathy tenha se suicidado. "Cada respiração de um golfinho fora da água é um esforço consciente e ela decidiu não respirar. Isso se chama suicídio ou asfixia induzida", afirma em seu livro 'Behind th Dolphin Smile' (Por trás do Sorriso do Golfinho, sem edição em português).

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Como assim? Elefantes que viram os mais velhos sendo mortos, cachorros que sobreviveram a explosões ou foram obrigados a trabalhar sob stress — como que escaparam do atentado ao World Trade Center ou do furacão Katrina — foram descritos como depressivos, agitados, ansiosos ou agressivos. No entanto, não sabemos e nunca saberemos se um animal tem os mesmos sentimentos de um humano — muito menos de um homem que sofre stress pós-traumático. Mesmo para nós, não há uma única forma de experimentar essa doença: cada pessoa vive os sintomas de uma maneira diferente.
Então os animais, além de emoções e distúrbios mentais, experimentam a doença individualmente? Um dos encontros mais interessantes que tive ao fazer o livro foi com “monge de elefantes”, em um vilarejo da Tailândia, em 2010. Seu trabalho é ajudar os elefantes que se tornam tristes, agressivos e descobrir por que isso está acontecendo. Fui até lá perguntar a ele qual a visão que ele tinha da mente animal, se os elefantes poderiam ‘perder a cabeça’ como nós. Ele simplesmente me disse que eu não precisava ter ido até lá perguntar isso, pois é óbvio que os animais têm sentimentos e emoções. E o que faz um elefante triste não é exatamente o que chateia outro elefante. No entanto, ainda acreditamos que só os humanos sentem como indivíduos e que os animais agem como espécie. Vários estudos têm mostrado que muitos animais não são assim. Eles também têm respostas individuais, de acordo com sua história e características.
No entanto, nunca saberemos o que os animais estão pensando. Mas também não conhecemos o raciocínio de nossos maridos, amigos ou filhos. Podemos perguntar a eles, mas isso não significa que vão nos dizer. De certa maneira, projetamos nossas ideias e nossa visão de mundo em outros humanos também. Fazemos isso todos os dias, o tempo todo. Temos tanto em comum com outros animais e, durante muito tempo, excluímos qualquer forma de projeção ou antropomorfização, vistas como sentimentais ou pouco científicas. No entanto, não temos escolha, não conseguimos tirar nosso cérebro de nossas cabeças para pensar sobre outros seres. Objetivamente, quando pensamos sobre mente, emoções animais ou mesmo a sanidade e loucura dos bichos, isso não existe — por isso, acredito que é mais útil projetar nossas ideias e raciocínios nos animais da melhor maneira possível, sem sermos tão centrados em nossas opiniões e valores. É muito difícil ser uma animal que sente. Perceber isso fez com que eu enxergasse todos os animais — inclusive os homens — de uma maneira muito mais generosa.
Há muitos bichos com problemas mentais? Os distúrbios mentais humanos são descritos no DSM, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria. Mas, para o diagnóstico de animais, só temos o Google. Entretanto, os cientistas estimam que cães expostos a explosões ou combates estejam bastante sujeitos a stress pós-traumático: dos 650 cães militares enviados para as guerras no Iraque ou Afeganistão, 5% foram diagnosticados com o transtorno. Além disso, nos Estados Unidos e Europa, milhões dos mais de 16 bilhões de animais criados em laboratórios ou fazendas exibem comportamentos anormais. Isso inclui 91,5% dos porcos, 82,6% de galinhas, 50% de ratos de laboratório e 18,4% dos cavalos. A tricotilomania (o impulso de arrancar os próprios cabelos) foi identificada em seis espécies de primatas, além de ratos, porcos, coelhos, carneiros, cães e gatos. Há casos históricos de elefantes ou macacos deprimidos, mas nunca prestamos muita atenção neles.

O conhecimento de algumas doenças mentais humanas, como a hiperatividade, é recente. Isso também acontece com os animais? Se meu cão ansioso tivesse vivido no século XIX, provavelmente seu diagnóstico seria de insanidade, nostalgia ou melancolia. Os rótulos que usamos para comportamentos estranhos dos animais correspondem aos dados aos humanos. Veterinários, fazendeiros ou donos de animais aplicaram termos como histeria ou melancolia aos animais como hoje falam de TOC ou depressão. Nossos esforços para compreender a mente animal sempre refletiram nossas ideias a respeito da mente humana. É como olhar para um espelho que mostra também a história das doenças mentais humanas. Conhecer essa história nos ajuda, também a compreender a evolução do conhecimento sobre nossas próprias emoções e sentimentos.

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